segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Historinhas - Mestras Queridas

Mestras Queridas

“Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais...”
(Rubem Alves Em “A alegria de ensinar”)


Existem pessoas que passam pela nossa vida e ficam para sempre. Se na nossa caminhada dermos uma olhadinha para trás, certamente veremos seus passos marcados na nossa estrada. Na minha estrada, com partes em linha reta e sem emoções e outras cheias de curvas e sobressaltos, estão lá, sempre ao meu lado, as pegadas firmes e as mãos amigas de minhas professoras. Elas me ajudaram a descobrir o mundo, a me encantar diante dele e a não ter a pretensão de querer entendê-lo completamente. Antes de mais nada, ensinaram-me a viver e a conviver.
Ainda menina, se me perguntavam o que queria ser quando crescesse, eu sempre respondia:
_Quero me casar e depois ser professora.
Todo mundo achava graça, mas minha resposta era fruto de muito pensar e deduzir. Até o final do antigo curso primário, todas as minhas professoras eram solteiras. Então, para mim esta era a lei: professora não se casava. Passado algum tempo, minha lógica infantil caiu por terra - todas elas se tornaram esposas e mães dedicadas. Acabei não levando a teoria em conta e fui professora durante alguns dos melhores anos de minha vida e só depois me casei.
Esta não foi a primeira vez que criei lógicas ilógicas. Um dia, brincando na casa de uma colega, olhei para o relógio e disse:
_ São quinze para as três. Tenho que ir. Minha mãe marcou que devo chegar às três horas.
_ Mas nós estamos no horário de verão. Três horas, na verdade são duas horas. – explicou minha colega.
Como tinha ouvido falar no tal horário de verão, logo deduzi: se três horas são duas, duas é uma hora, uma são meio-dia e assim por diante. Fiquei maravilhada! Fui dando ré no meu pensamento e achando a ideia fantástica. Por que não tinham pensado nisto antes? Tinham inventado o “não-tempo”, o fundo sem fundo do mundo. Agora todo mundo era livre, sem as amarras do tempo.    Eu já nem precisava mais sonhar em ter um relógio. Pra que? Se sempre que eu olhasse para ele, não era o que eu pensava. Fiquei lá brincando até a hora que me deu vontade. Quando voltei para casa, levei umas boas palmadas pelo atraso. Tentei explicar minha teoria, mas mãe com raiva não aceita explicação.
Aos poucos, fui percebendo que minha lógica nem sempre tinha lógica e até hoje tenho o pé atrás com a dita cuja.
Voltemos à caminhada.
Na minha estrada, os passinhos e a companhia de Dona Darlene Vono aparecem repetidos várias vezes. Foi minha primeira e inesquecível mestra. Era uma jovem baixinha com óculos de gatinho, iniciante no magistério. Cheia de sonhos e de um amor infindável pela educação.
No meu primeiro dia de aula, detestei tudo. Como já sabia ler e escrever, fruto das brincadeiras de escolinha com as irmãs mais velhas, pensava que, no grupo escolar, iria ter contato com mil coisas ainda não vistas. Que decepção! Os exercícios de controle motor eram monótonos e sem atrativo algum. Foi ela quem conseguiu transformar tudo aquilo em prazer. Além de ensinar as primeiras letras, tinha um grande trunfo que tirava da cartola e a tornava a mais apaixonante das mestras: sabia tocar acordeão (em Santa Rita sempre falávamos acordeom). E as músicas infantis eram acompanhadas pelo som dos seus dedos correndo pelo teclado de um lado e por aquelas bolinhas do outro. Que mágica! Quem neste mundo tinha professora mais interessante que eu? Claro que ninguém!
Ensaiou quatro alunas (Lelé, Maria Rita, Maria Vitória e eu) para uma coreografia com a música Bigorrilho. Lembro-me até hoje: saia vermelha, blusa branca e lenço também vermelho nos cabelos. Até hoje sei a coreografia. Foi um sucesso santa-ritense. Viramos arroz-doce de festa. Apresentávamos em todas as solenidades, de homenagem a padres até formaturas. Havia festa? Lá estava o quarteto Bigorrilho ao som de Darlene e seu acordeom.
Aparecem agora, por dois anos seguidos, os passos de Dona Vilma Pivoto com seus óculos de lentes verde e uma paciência de fazer inveja a Jó. Tinha uma tática sábia para manter-nos calados: colocava sempre um menino sentado junto com uma menina na carteira para dois lugares. Foi com ela que tomei gosto pela Matemática. Conseguia tornar tudo simples e claro utilizando o nosso cotidiano. Nos problemas, hoje chamados de situações matemáticas, encenávamos compras de cinco doces de banana na venda do Sr. Elias, de dois quilos de arroz na mercearia do Sr. Urbano.  Pagávamos com dinheiro de papel recortado, recebíamos o troco e aprendíamos a “matéria terrível” brincando.  Só depois fiquei sabendo que isto se chamava didática.
No último ano do curso primário, fui aluna da Dona Neide Constanti. Calma, tranquila. Até hoje, lembro-me de seus olhos e suas olheiras. Acho que é porque foi minha primeira professora que não usava óculos.
Agora era estudar, estudar e estudar para o Exame de Admissão. Era como se fosse um vestibular para ingressar no ginásio. As matérias vinham num livro muito grosso e aterrorizante. Era difícil, tínhamos que saber de cor e salteado as capitais de todos os países do mundo, História do Brasil de cabo a rabo, Português, Matemática e Ciências.  Tia Marita salvou os sobrinhos reunindo todos em sua casa para seus ensinamentos preciosos. Foi uma mestra extra classe, mas mesmo assim inesquecível e por quem tenho grande admiração e respeito.
Cheguei ao ginásio! Mudei de escola. Deixei, com saudades, o Grupo Escolar Sanico Telles, que minhas irmãs mais velhas chamavam pejorativamente de “grupinho de lata” e entrei na Escola Normal Oficial Sinhá Moreira. Tudo novo, tudo em dimensões imensas (até no nome pomposo) para meus olhos ainda muito pequenos.
Vejo passos de duas pessoas que caminham juntas. São Dona Didi Gaudino e Dona Maria José Souza. Duas “feras”. Eram pintadas pelas alunas mais velhas do colégio como duas personagens terríveis. E não eram. Sabiam TUDO que ensinavam e cobravam TUDO que haviam ensinado. Apenas isto.
Passei por elas sem grandes traumas, mas com muitas lembranças.
Recordo como minhas pernas tremiam quando Dona Didi balançava uma sacolinha com números de víspora para sortear as quatro “vítimas” para a temida arguição oral. Não importava qual fosse meu número de chamada, parecia que havia um imã – o disco com meu número “pulava” para a mão dela, enquanto as outras meninas respiravam aliviadas.
Sua primeira prova foi-nos entregue, depois de corrigida, com a seguinte recomendação:
_ Confiram as notas. Não aceito reclamações posteriores.
Somei, “resomei”, “milisomei” os pontos e não consegui chegar aos 8,5. E agora?
_ Professora, minha nota não é 8,5.
_ Como não?
_ É 7,5.
Gargalhadas e mais gargalhadas. Deve ser por isso que outro dia, depois de mais de trinta anos sem vê-la, me chamou pelo nome. Como poderia esquecer esta maluca?
De Dona Maria José Souza, também, as lembranças são muitas. Na nossa juventude não existiam as famosas chapinhas de hoje, mas a moda eram os cabelos lisos, esticados sem nenhuma ameaça de onda. Quem não se lembra da mão de obra que era para quem não teve a graça divina de ter nascido com eles assim? Costumávamos fazer um penteado que era chamado “touca” para deixá-los esticados. Depois de enrolá-los ao redor da cabeça, colocávamos um pedaço de meia de seda, herdada da mãe, ou um saquinho de rede rosa que servia de invólucro para maçãs. Para ir ao colégio tínhamos que colocar, por cima, um lenço preto. Antes da aula da Dona Maria José Souza era um deus nos acuda. Todo mundo soltando os cabelos, porque ela adorava mandar ao quadro quem estivesse usando lenço. Consigo ouvir sua voz um tanto grave:
_ Pula violeta! Você de lenço, vá ao quadro.
Quem se arriscaria?
Além da Matemática, ela também gostava das palavras. Todos os dias, escrevia ou mandava que alguém escrevesse no alto do quadro negro um aforismo. No primeiro dia de cada ano, quem escrevia era ela, com sua letra linda: “Sê perfeito em tudo que fizeres” (Tales de Mileto). Nem sei se esta frase é mesmo dele, mas para mim ficou sendo. E, no meu caderno, entre fórmulas e teoremas, existiam frases lindas. Foi assim que comecei a gostar das palavras e vem daí minha mania de sublinhar o que gosto nos livros.
Olhando bem a minha estrada volto a ver Dona Darlene. Agora um pouco diferente, cheia de biquinhos e fricotes, me ensinando Francês. Acabo o ginásio e vou para a ETE e, lá, a reencontro lecionando Português.
Da faculdade, Univás, nunca vou me esquecer da professora Mírian dos Santos, de literatura brasileira. Foi quem me ensinou a ler além das palavras que estão escritas nos livros. Deu-me a clareza da vista, iluminou meu olhar e me despertou para a leitura feita com a alma e o coração. Fez-me ter memória e a admirar o passado e as marcas que o tempo faz em nós. Por isso, hoje, sou capaz de enxergar a importância que minhas mestras tiveram em minha formação e sentir, por elas, gratidão eterna.


6 comentários:

  1. Bonito ,envolvente, verdadeiro e delicado texto , como a autora .
    Parabéns .
    Beijos e boa semana , Nidia.

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    1. Obrigada, Marisa. Você, como sempre, tão gentil!
      Beijos e boa semana para você também.

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  2. Vc sabe, sou apaixonada por tudo que escrevre. De maneira simples vc consegue "prender os olhos da gente" e nos faz viajar no tempo...

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    1. Obrigada, Rita. Coloco no papel o que a memória não esquece e que aquece sempre o coração da gente. Beijos.

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  3. A memória aflorou como uma mina d'água... lembranças e mais lembranças foram brotando de suas palavras, acompanhada de imagens, que se no papel, estariam amareladas...obrigada.

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    1. Que bom que meu texto te fez lembrar coisas boas que estão sempre armazenadas em nossa memória. Beijos.

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