segunda-feira, 9 de abril de 2012

Historinhas - O segredo da casca da laranja

O segredo da casca da laranja

Sempre achei que existe um fio ligando o olfato à memória. Quando o cheirinho do café coado entra pelo nosso nariz, parece que estamos acordando na casa da nossa mãe, vestindo o uniforme do grupo escolar e nos preparando para ir para a escola.
Foi isto que aconteceu comigo ontem. Meu marido descascou uma laranja para minha filha que enrolou a casca comprida em formato de flor, cheirou-a e disse:
- Olha mamãe, como cheira bom!
Quando também a cheirei, fui logo abrindo o baú da memória onde guardo as coisas boas da infância, prontas para saltar para fora.
Fui me lembrando dos inúmeros aniversários comemorados na minha família. Família grande, dinheiro curto, mas meu pai nunca deixava nosso aniversário passar em branco. Estou até ouvindo minha mãe dizer:
- Tem que fazer uma coisinha, um bolinho qualquer.
Sabíamos que vó Quininha, minha madrinha Tita e Cila iriam aparecer lá em casa. Não se esqueciam de nenhum aniversário. No começo da noite, elas chegavam.
Tempos depois vinham a Tita e a Cila, vovó já tinha partido e por último apenas a tia Cecília Gomes (Cila). Nossa tia, se não de sangue, de afeto. Fora criada com papai desde pequena. Até quando pode, antes de ficar cega, costumava ir nos dar seu abraço afetuoso.
Por isso, havia sempre um bolinho com K-suco. Até o Guaraná Regina, creio que fabricado pelo Sr. Alcion Brentan e vendido na Avenida Sinhá Moreira, era fora de nossas possibilidades. Meu Deus! Escrevi isto e já veio outro fio amarrado. Lembrança puxa lembrança. Quando ganhávamos um guaraná caçula (era assim que se chamava a garrafinha pequena de refrigerante) para render bastante não tirávamos a tampinha com o abridor. Fazíamos um pequeno furinho com um prego fino e íamos tomando, aos poucos, para durar bastante. O líquido descia lentamente garganta abaixo e dava uma sensação gostosa de frescor. Rapidamente tirávamos a garrafa da boca e conferíamos se não tínhamos exagerado na dose. Que bom! Ainda restava quase que a garrafa cheia. Acho que é por isso que sou econômica até hoje. Aprendi cedo que as coisas boas da vida devem ser sorvidas lentamente e aproveitadas até a última gota.
Voltemos à casca de laranja e ao bolo. O bolo era feito por minha mãe, no dia anterior à data do aniversário. Podíamos escolher o formato redondo ou retangular. Geralmente a aniversariante tinha a obrigação de ajudar, batendo as claras em neve (eu odiava!), lavando as vasilhas que iam sendo desocupadas e o pior – untando a forma (até hoje detesto fazer isto, sentir os dedos besuntados de manteiga). Enquanto o bolo ia assando, era hora de fazer o recheio.
Leite condensado? Nem pensar... Só conhecia seu sabor da casa de minha bisavó, nas grandes ocasiões. E grande ocasião era quando eu ouvia a Tita falando:
_ O Walter e a Zaíde vão chegar!
E era um tal de lustra tudo, lava tudo, arruma tudo. Lençóis e toalhas de linho sendo lavados, engomados e passados com o ferro cheio de brasa vermelha. Subia um cheiro gostoso no ar... Até hoje este cheiro também brinca na minha cabeça. Cobertores grossos iam sendo levados diretamente para o sol. Ficavam lá, o dia todo, pendurados no varal para sair o cheiro de armário. Eram feitos pudins e pavês deliciosos e eu tinha o direito de raspar as latas de Leite Condensado com meus dedos (sempre ouvindo a recomendação de ter cuidado) e lambê-los até que aquele gostinho bom sumisse totalmente. A rotina da casa era totalmente mudada para esperar o casal que eu pensava que morava num reino muito distante chamado Rio de Janeiro.
Não, nada deste ingrediente caro. Fora de cogitação. O recheio do bolo lá de casa era um mingauzinho de leite e açúcar engrossado com maisena. E aí que está o grande segredo - para dar um gostinho bom era colocada, para ferver junto, uma casca de laranja inteira, comprida que ficada brincando de enroscar na colher de pau enquanto mexíamos o creme. E o aroma de laranja ia invadindo a cozinha...
Bolo e recheio prontos! Agora era aguardar a chegada do meu pai, vindo do trabalho. Rechear e enfeitar era trabalho destinado a ele, já que a paciência da mamãe era muito curta para tantas exigências infantis. Papai partia o bolo ao meio, sobre uma toalha, no sentido horizontal e tirava a parte de cima com grande maestria. Não quebrava um só pedacinho. Punha a parte inferior numa bandeja, espalhava, com uma faca, uma farta camada do recheio de laranja sobre ela e, sem eu entender bem como conseguia fazer aquilo, colocava novamente a parte superior da massa. Eu o achava um boleiro de mão cheia, sem contar que ele também conseguia virar panquecas jogando-as no ar. Para mim e meus olhos de criança, ele era um verdadeiro mágico na cozinha.
Agora era só confeitar... Mais claras em neve bem firme. Algumas gotas de limão e açúcar, açúcar, açúcar. Colheradas e mais colheradas. Hoje, só de pensar naquele suspiro engordo uns três quilos. Ninguém queria o bolo com o suspiro passado com a faca, lisinho sem nenhuma obra de arte. Começava o nosso grande dilema. Pegávamos na gaveta os apetrechos de confeitar. Era um saco de nylon com uma rosca metálica na ponta onde se encaixavam os inúmeros bicos. Na minha casa, os bicos tinham nomes: pitanga grande, também chamado de pitangona, pitanguinha, cobrinha, macarrão crespo, tripa fina e outros tantos que a nossa imaginação criara de acordo com a forma que o suspiro ia tomando quando saia vagarosamente pelo bico até pousar na superfície do bolo. Todos nós éramos exagerados, queríamos todos os arabescos possíveis. Só a paciência de Jó do papai era capaz de satisfazer tantos desejos.
Nunca me esqueci do meu bolo mais bonito. Começou redondo, lisinho na parte de cima e nas laterais. Muitas pitangonas brancas foram colocadas bem rentes à bandeja. Pensei que já estava pronto e o achei um tanto sem graça. Então o artista-pai fez a grande surpresa, “la grand finale”. Colocou um pouco de chocolate em pó no resto do suspiro e com o bico de cobrinha e as mãos, antes bem firmes, desenhou números marrons na superfície. Depois, dois ponteiros – um maior na direção do doze e o menor apontando para o número nove. Pronto!!! Eram nove horas e naquele momento ouvi as nove badaladas do relógio da matriz de Santa Rita.

5 comentários:

  1. que lindo!
    Essa leitura me remeteu a lembranças agradáveis de infância,muito obrigada !
    Cada vez mais encontro semelhanças em nossas vidas ,tenho também uma família grande; 9 irmãos;infância de poucos recursos financeiros,porém com muitos recursos afetivos pois quando temos muitos irmãos um ajuda o outro com menos competição e mais colaboração ;caçulinha com a tampa furada com prego somente em ocasiões muito especiais,prepararmos nós mesmo o bolo de aniversário ,que delícia ...

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  2. Oi. Mica. Adorei te ver por aqui. Cada vez mais aprendemos com a maturidade que as coisas boas da vida não dependem necessariamente de uma boa situação financeira. Como você mesmo disse, o essencial são os recursos afetivos. Apareça sempre. Abraços.

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  3. Lindo seu texto! Belas imagens ele traz... Porque o que temos na vida são essas lembranças! Imagino o sabor gostoso desses bolos de aniversario... Delicia! Eu nao tenho esses cheiros na minha memória olfativa, pelo menos nao que eu me lembre...

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  4. Oi, Maíra. Remexa bem no baú da memória que provavelmente você vai achar uns cheirinhos gostosos escondidos por lá. Volte sempre! Abraços.

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  5. É uma gostosura este "cheirinho de infância"

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